-Hmmm…. E se colocar um pouquinho de sal nesse chocolate?
E assim surgiu o chocolate com sal do Himalaia e Amêndoas – que nunca saiu do TOP3 mais vendidos desde 2015.
Existem empreendedores que começam seu negócio pela oportunidade.
– Isso aqui vai dar dinheiro!
Então criam uma marca, já começam a vender uma idéia e buscam quem possa fabricar aquele produto.
Outros, começam seu negócio pela paixão.
-Isso é bom demais para ficar só pra mim!
Eles veem a transformação que aquilo fez em suas vidas e querem propagar isso para o mundo. Esse foi o meu caso.
O processo criativo desmitificado
Para quem não sabe, todos os produtos da Java Chocolates foram criados por mim, Aline.
Minhas primeiras criações, como o chocolate com damasco e amêndoas que ilustra esse post, surgiram de combinações que eu gostava de fazer antes de trabalhar com alimentos.
Quando comecei a estudar chocolate, fiz um curso que tinha um módulo de avaliação sensorial.
Nele, descobri que tinha um “talento” para decifrar notas aromáticas, e fazer harmonizações.
Particularmente, não acho que seja um talento, mas sim, aquela velha história das 10mil horas de prática de Anders Ericsson.
Repita até ser algo natural.
Mesmo vindo de uma família simples, tive o privilégio de ser exposta a muitos alimentos, gostos e texturas.
Minha mãe foi criada na roça, e nos ensinou a comer de tudo. Em sua casa, carne era só aos finais de semana – portanto, a base da alimentação eram vegetais preparados de muitas maneiras diferentes.
Tinha beterraba no suco para aporte de ferro, suco de pepino com hortelã, maçã na lancheira da escola e nunca faltava aquela saladona de legumes cozidos.
Nas épocas de crise como a de 1992, meu pai trocava seu serviço de consertos de televisão por peixe e outros alimentos que os vizinhos feirantes tinham a oferecer.
Ele sempre foi um curioso e despertou em nós a coragem de provar tamarindo, jambolão, siriguela e tudo o que for diferente.
E talvez o fato mais decisivo: não tinha como ter paladar seletivo. Minha mãe só dava duas opções: Ou comia o que tinha à mesa ou não comia.
Nosso paladar é treinável.
Para identificar uma nota sensorial de pimentão em um vinho, eu preciso conhecer o gosto e o cheiro do pimentão.
E para isso, é preciso provar e cheirar muito pimentão para gravar esta sensação na memória!
Uma pessoa “chata” para comer certamente terá muita dificuldade em ser sommelier ou Q Grader, ou até mesmo perfumista.
Mesmo com kits de estudo como o da imagem abaixo, a gente precisa saber o que é, por exemplo, anis, antes de identificar essa nota.
A facilidade vem do hábito e da observação.
Além de estar exposta aos alimentos, eu me interessava por eles. Meu passatempo quando adolescente era me reunir com 2 amigas e criar receitas de bolo! (Um beijo pra Stefanie e Carol!)
Hoje, se consigo sentar-me à frente do computador e criar uma formulação quase perfeita é por ter uma vida toda provando, sentido o cheiro e a textura dos alimentos.
O processo criativo em si:
Eu realmente não sei como é em uma grande indústria, mas aqui na nossa fábrica bean-to-bar funciona assim:
Tudo começa com a ideia do produto.
- Qual apelo funcional? (esse é meu mercado, logo, é fator chave pra mim)
- Qual o tamanho?
- Qual o formato?
- Qual o público alvo?
Depois de desenhar isso, vou para as partes táticas:
- Quais ingredientes vou usar neste produto?
- Meus fornecedores atuais já tem este ingrediente ou vou precisar homologar?
- O preço final vai ser adequado ao público alvo?
- Quais os claims nutricionais quero alcançar?
Isso é muito importante e vejo muita gente se perdendo aqui. Usar um ingrediente de prateleira de supermercado para fazer testes, e depois não encontrar fornecedor confiável com custo que faça sentido dentro do seu modelo de precificação.
Próxima etapa: ir para o laboratório de testes.
- Como preparar a receita para ficar gostoso usando o mínimo de ingredientes?
- Quais processos produtivos usar para ampliar a vida de prateleira, sem usar conservantes?
- Como deixar o processo simples e replicável para meus funcionários?
- Esse processo vai trazer riscos para minha produção? Exemplo: uso de altas temperaturas ou maquinário novo.
É aqui que entra um pouquinho do tal talento. Conforme vou testando a receita, provo e sinto o que pode ser ajustado.
Não é raro que nesta etapa surjam outros produtos que são variações do que está sendo desenvolvido.
O laboratório, ou a cozinha de testes, é um playground de idéias que se dependesse de mim, eu não sairia nunca!
Validade e Segurança do Alimento.
- Depois de pronto, os produtos piloto passam por um processo de análise para determinar sua validade.
- Se não ficou com a validade mínima aceitável aqui pra fábrica, volto à prancheta para ver o que posso melhorar em ingredientes e processo.
Embalagem e Marketing: chegou a hora de empacotar o produto.
- Calcular a informação nutricional definitiva, nos termos da lei
- Fazer o design da embalagem nos termos da lei
- Fazer orçamentos em gráficas
- Aprovar a embalagem e mandar produzir.
Vendas
- Com o produto pronto, é hora de cadastrar as operações fiscais no sistema
- Fazer a precificação definitiva com os impostos
- Atualizar as tabelas de preços e os nossos sites
- Divulgar para vendedores
- Divulgar para clientes.
Este é o processo de criação completo que uso com minha equipe aqui na Java Chocolates.
A gente faz por metodologia ágil, mas esse é o roteiro mínimo: o que muda é a ordem das coisas de acordo com o produto.
Veja que o tal “talento” só é usado em uma pequena etapa, lá no laboratório de testes.
Muita gente acha que é só chegar na cozinha e jogar meu pó de pirlimpimpim e pronto: criou-se mais um produto vencedor!
No fim das contas, como tudo na vida, é o trabalho duro que vence o talento.
Não pule a parte chata. Não menospreze o processo.
Uma boa receita pode ajudar a dar o próximo passo, mas é um passo a passo estruturado e replicável que vai garantir a escala do seu projeto.
